quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Deixa Sair

Escrever é um ato de deixar sair. Aprendi muito a deixar sair com Sônia Hirsch, através de seu livro sobre hábitos naturais e alimentação curativa. Escrever é a minha saída, pois quando sinto algo preso na garganta, é que esse algo está enraizado no meu profundo ser. Não quero mais agarrar-me ao passado, essa árvore deverá ser sacrificada em nome de seus novos frutos que precisam de espaço para florescer. Começo a pensar assim depois de ler algumas frases de Clarice Lispector. É que desde o período da faculdade, ainda jovem, tomei gosto pela fenomenologia, e no meio de tantos marxistas e anarquistas nutri essa minha vocação silenciosa em seguir os sentidos humanos e a natureza da existência. Nunca fui das maiorias. Na realidade, nunca fui, pois o que há em mim flui.

Cansada de tanto ser-me, passei a ser-me outra, e outra e outra. Antes acreditava que deveria ser atriz para não ser-me. Hoje fui-me embora e criei-me outra por sobrevivência. Larguei dessa coisa de atriz, afinal minha sobrevivência vem mesmo do Serviço Social. Dali do conflitos entre o público e o privado, entre o ter e o não ter, entre o sujeito e o Estado. Vivenciei dramas, acolhi mães desesperadas com a morte violenta de seus filhos, acompanhei a definhação de um ser humano até a morte lenta e dolorosa. Pessoas sem nome, crianças em chiqueiros, profetas migrantes das ruas, velhos abandonados em camas de hospitais, enchentes, acidentes, drogados. Aprendi a conviver com tudo e todos que a sociedade quer esconder.

Não foi difícil. Que minha mãe não leia, pois não quero tirar-lhe a ilusão de que tive uma vida sem problemas. Não quero que entenda porque me tornei uma adolescente e uma jovem inconsequente e insubordinada, promíscua e delinquente. Preferia que tudo fosse mais seguro, mas o mundo quis me ensinar da maneira mais dura. O que fiz além de carregar a cruz foi adorná-la de esperanças e de símbolos meus. Coloquei-lhe fitas azuis e lantejoulas brilhantes penduradas. Colori de amarelo ouro e  colei rendas negras em suas extremidades, Amarrei nas fitas tudo aquilo que arrastava pelo chão do caminho, sem me importar com o peso da cruz. Dei-lhe outros nomes e outras formas, e até me transformei nela para me auto carregar.

Conheci a história de uma mulher que quando era criança sofreu abuso sexual. Durante toda a infância e juventude, até a vida adulta, ela acreditava que era a culpada por atrair aqueles homens e levá-los a praticar abusos com o seu corpo. Em um dia de lucidez ela se deu conta de que foi uma vítima. Era tão inocente que não viu naquele ato de abuso nenhum significado ou consequência. Mas muitos sentimentos contraditórios vieram à tona, até finalmente ela desejar terminar esse ciclo de culpas, baixa auto estima e de auto destruição que se infligiu.

Primeiro mudou suas escolhas. Deixou lembretes nas paredes da memória para não se esquecer delas. Depois mudou a cor dos olhos e enxergou de verdade sua aparência-essência. Um caminho ora solitário, ora com pessoas significativas que lhe ensinaram sobre a resiliência e principalmente, sobre o amor.

Não vejo beleza na miséria alheia. Mas tenho uma vida interior vasta que me faz ser o outro além de ser-me. Esse é o meu trabalho, essa a missão da minha vida. Ser-me tantos e toda.