segunda-feira, 25 de abril de 2022

Abuso

 Acordei naquele dia no meio da manhã, sem muito tempo para os afazeres, por isso olhei as mensagens no celular rapidamente, entre um xixi e um café. A mensagem estava no grupo da Família e tinha um link para acessar o conteúdo de uma reportagem grotesca, que falava do assassinato de um homem de 50 anos, branco, durante o trabalho, na frente da filha. Minha mãe perguntou se eu lembrava dele, era amigo de infância do meu irmão. Morava no bairro. 

___ Mãe, não lembro, desconversei, Mas ela insistiu. Mandou a foto do perfil da rede social e falou que era irmão da fulana e filho da cicrana que ia na missa aos domingos (eu era religiosa, cheguei a crismar naquela paróquia). 

___ Sim, acho que lembro dele.... coitada da filha. 

___ Seu irmão disse que foi assassinato encomendado. O pai de uma adolescente que ele estuprou teria contratado assassinos que fingiram interesse em comprar um imóvel dele. Marcaram uma visita e no meio do caminho simularam que estavam perdidos, pediram para ele sair do carro e ao passarem por ele.... tiros certeiros. O corpo caído no asfalto e a filha dentro do carro assistindo essa cena violenta. Disse minha mãe ao telefone, dias depois quando nos falamos. 

Ao desligar o telefone, me veio a certeza: eu conheço esse filho da puta. Ele me abusou sexualmente na minha infância. 

Foi muito estranho como tudo aconteceu. Aconteceu a dez anos atrás. Eu estava em casa sozinha, era umas 20 horas, a televisão estava ligada, não me lembro o programa. Era um dia de folga entre um plantão e outro. De repente cai uma bomba em cima da minha cabeça. Explodiu uma lembrança da infância, que estava apagada da memória acessível. Eu sofri um abuso sexual coletivo, não tinha nem sete anos de idade. 

A primeira droga foi no carnaval, aos onze anos, extinto Bloco das Domésticas de Luxo, ano de 1987. Lança Perfume! Me deixou leve.... depois, foi o livro da Cristiane F. Vamos imitar? Remédios, Contini Bianco com leite condensado. Mais cheirinho de loló. Pinga de leite, tranquilizantes, vinho doce, catuaba, cigarro. Aos 16, maconha. Aos 17, cocaína. Aos 20, LSD. Aos 21, crack. 

Primeira vez aos 16 anos, verão de 1992. Foi ruim, e o cara disse que eu não era virgem. Será que eu rompi o hímen naquela queda na bicicleta do meu irmão? Bati com tudo no quadro, doeu bastante... O cara, que era apaixonado por mim, simplesmente começou a namorar outra menina... Aos 17, de fato tive uma ótima experiência com um namorado mais velho. Namoro que durou o tempo dele conseguir o passaporte para a Europa... Dali em diante as relações começaram a ser mais livres, mesmo o namoro era aberto. Entre o abuso de substâncias, o comportamento arriscado e a liberdade sexual, cheguei a idade adulta com uma lista grande e nada seleta de relacionamentos sexuais e amorosos. Geralmente marcados por abusos, traições e rompimentos. 

Eu era uma menina má. 

Mas naquele dia sentada no sofá eu entendi tudo. Foi como se tudo fizesse sentido. Eu não desenvolvi cedo, eu fui abusada não uma, mas várias vezes, não por um, mas por por vários homens. Em diversas circunstâncias, da infância à idade adulta. De um cara mostrando o pinto para uma criança de uniforme voltando da escola sozinha, a um estupro coletivo praticado pelos garotos mais velhos, os amigos do meu irmão. De vários caras passando a mão no meio das minhas pernas nos shows do Titãs ao cara que se trancou no banheiro e tive que cair na porrada com ele para entender que eu não queria sexo. Ah, o tio da aula de vôlei também! Vamos fazer exame físico meninas? É só abrir bem as pernas que eu passar as mãos e ver se está tudo bem. São dezenas de cenas passando pela minha cabeça.... eu fui muito abusada, como não tinha consciência disso?

Achava tudo normal. Afinal, não era só comigo. Abusos e abortos. Eu, minhas amigas. Fui levada a uma clinica no Rio de Janeiro grávida de dois meses e fiz um aborto clandestino aos 17 anos, acompanhada da minha responsável legal. Nunca mais falamos disso. Tomei pílulas até os 37 anos, quando não consegui mais engravidar e acabei tendo que fazer uma cirurgia de retirada do útero. Tenho um filho morto. Mas essa é outra história de abuso sob o meu corpo, assim como as cirurgias plásticas e dietas ao qual fui submetida. 

Foi uma descoberta terrível, que me abalou muitíssimo, me levou a terapia. Mas eu consegui montar o quebra cabeças e ver que a peça que faltava não era minha, mas da época em que eu vivi. Eu me perdoei. Perdoei meus pais que nunca desconfiaram, meus irmãos que condenavam meu comportamento. Mas eu me perdoei de verdade. Mudei a minha história, comecei a me valorizar, amar o meu corpo, minhas escolhas, minhas percepções de mundo. 

Mas o pai daquela adolescente, ele não perdoou.