sábado, 1 de março de 2014

EU, FRIDA (5)

''Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.''
(Frida Kahlo)


As Duas Fridas
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ELA I

Tinha um coração. 
Não, tinha dois corações.
Um que pulsava a vida e outro que amava.
Um que irrigava sangue nas artérias e outro que chorava.
Pobre menina triste...
Pobre diaba.

ELA II


Gostava de segredos.

Sempre um segredo e outro segredo.
Sabia mentir a si mesma.
Acreditava ser verdade a sua própria invenção.
Uma vida aqui, outra acolá. 
No seu espelho distorcido, ficou a imagem
que não era dela e ninguém mais viu.

E com as mãos espalmadas, acariciava o próprio rosto, sentindo a pele oleosa e quente das bochechas, macias e redondas, como um pêssego maduro. O seu corpo se vestia da nudez dura e cruel dos anos passados. Os seios já cansados da rigidez, agora mais macios e inclinados, porém ainda espertos. A barriga que insiste em insinuar-se à frente, os flancos de gordura nas costas. Era um corpo sincero, vivido. Ao olhar-se no espelho, sorriu e vislumbrou as expressões do olhar. Pálpebras caídas, marcas de expressão por todo o rosto. Não parecia mais uma menina, e sim uma mulher. E era bonita.

Em seguida sua pele corou e começou a formigar. Coceiras, comichões e dores. O desconforto cresceu a tal ponto que ela desesperou-se. Fios dourados e finos de cabelos soltavam-se do couro cabeludo feito planta de soprar. Sentiu o gosto de sangue na boca. Seu dente incisivo desprendeu-se da gengiva. As unhas caíram, a coluna partiu-se, os olhos pularam para fora. O corpo ficou disforme, com os seios imensos e as pernas cada vez mais finas. Ela foi se desfazendo, se desfazendo rapidamente. Virou um mingau de gente. Lisergicamente ela dissolveu-se da sua própria imagem. 



ELA III


Uma olhou para a outra.

Se conhecem?
Se amam ou se odeiam?
Uma olha a outra pelo olho esquerdo
Olha bem para o seu dedo
O mesmo dedo que lhe enfiou na cara

Gostava do pé de ameixa no quintal de casa para se empoleirar e tinha muitos amiguinhos na rua. Mas desde muito cedo conheceu a melancolia. Brincava de boneca quando viu que sua fantasia de brincar era melhor que a vida que vivia. Batia nos meninos que a chamavam de Pulga Loira. 


Nunca deixou de ser idealista. Imaginava um mundo de John Lennon e pintava camisetas com frases de utopia social. Anotava nas agendas os seus pensamentos mais importantes, crendo que assim eles estariam eternizados. Conversava com os insetos e fazia o besouro de broche na camisa. Escrevia poesias na máquina de escrever. Sonhava em ser bailarina ou médica. Ouvia "Meus Caros Amigos" com a mãe e "Led Zeppelin IV" com o pai. Carregava a melhor amiga na sua bicicleta para os passeios vespertinos na estrada da represa.


Até que um dia um sentimento obscuro veio à tona. Ouvia por dentro uma confusão de intuições e uma voz barulhenta e ofegante. Sabia que existia outra pessoa dentro dela e parecia envelhecer dois anos a cada dia aquela estranha.  Ninguém entende? Cresceu disfarçando a dor da desconhecida, cobriu-a com sua rebeldia. Achando-se em um mundo paralelo, trancou-se no seu quarto solitário e jogou-se na vida frívola. 



EU IV

Então a juventude aflorou naquelas duas

Elas viajaram para tantos e tantos lugares
Outras viagens astrais, sensoriais.
Davam-se bem as duas.
Uma gostava de andar, a outra de fumar
Uma queria o alto mar, a outra a praia
Uma namorava, a outra ouvia rock
Quando se encontravam, faziam tudo juntas.

Os olhos se abriram e enxerguei a praia. Ouvi apenas o barulho manso das ondas. Incrivelmente naquele momento, dois golfinhos saltavam em cima das ondas, o sol ainda não raiara, nem a lua habitava mais o céu, que se cobria de azul cobalto. Estava dentro do saco de dormir, deitada na areia. Vieram lembranças confusas da noite anterior, o lual, a roda de violão, as tochas de bambu acesas, e Enzo. Olhei para os lados e não o encontrei, onde estaria Enzo? Fiquei ali assistindo os golfinhos até eles sumirem no horizonte.


Enzo apareceu na praia lá pelo meio dia. Said nothing about anything. Os garotos são sempre assim? Eu me sentia telúrica, com um pêndulo nas mãos captando as energias e vibrações do lugar e das pessoas. O meu submundo era uma coisa assim: eu simplesmente andava sem me preocupar com  a direção. Queria mesmo era experimentar situações e sensações. Não me importavam as consequências, eu nada temia e pouco sabia da morte. 


EU V


Elas vão embora?

As raízes já estão erodindo o chão
Daqui a pouco elas chegam
Devem estar procurando um bar 
Talvez uma chegue e a outra fique por lá
Talvez uma diga que te ama e a outra nem aí
Uma hora junta todas e ama tudo
Uma não vai sem a outra mesmo

EU VI


O que eu sou não tem começo nem fim, apenas uma continuação que transcende o que há em mim. 







terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

EU, FRIDA (4)

Henry Ford Hospital
''Pintar completou minha vida. Perdi três filhos e uma série de outras coisas, que teriam preenchido minha vida pavorosa. Minha pintura tomou o lugar de tudo isso. Creio que trabalhar é o melhor.'' Frida Kahlo

A noite avançava e eu estava no Centro de Umbanda desde às três horas da tarde. Sentia fome, mas só sairia dali quando tudo acabasse. A sala  estava quente e escura, iluminada apenas com algumas velas acesas. Várias pessoas foram atendidas e partiram dali. Mas o lugar ainda estava cheio, entre médiuns iniciados e pessoas que, como eu, procuravam ajuda. Eu estava ali por causa das minhas dores lombares. Procurava uma cura para o meu problema de saúde, já que nenhum médico me dera esperança além da cirurgia. 

A mãe de santo, uma mulher branca, baixa e magra, com cabelos curtos, negros e lisos,  nariz fino e muito simpática, que participou do estudo religioso horas antes, se transformara no Exu das Sete Encruzilhadas. Ele era desbocado, prepotente, mulherengo, sedutor e zangado. Não havia som de tambores no local, apenas vozes entoando as músicas e as vozes dos orixás: Exu, Erês, Ciganas, Preto Velho e Zé Pilintra. O Exu das Sete Encruzilhadas era o mêntor daquele ritual, ele olhava para nós do platéia e escolhia uma pessoa. Esta pessoa era levada para o meio do círculo onde os demais orixás se encontravam. Eu assistia toda aquela sucessão de ritos, as velas e incensos acesos, os panos coloridos, a cachaça, a pipoca, as imagens de santos, arcanjos e orixás espalhadas, os potes de barro, as palavras proféticas e escrachadas de Exu, que tocava sempre na ferida das pessoas com deboche e brabeza. Então chegava o momento do transe, onde orixá e pessoa pareciam sair daquele plano material, olhos virados, corpos dançando, palavras soltas, gemidos, pessoas caídas no chão, gritos e outros espíritos obscuros que guerreavam com Exu. 

Eu já estava com medo do que aconteceria comigo, aquilo era tudo muito intenso e tenso. Então chegou a minha vez. Exu me cortejou e disse que queria ser o meu macho e fazer um filho em mim. Eu disse que não queria pois já tinha o meu namorado. 
_ Então você quer engravidar dele, do seu namorado? Tem certeza disso?
_ Quero sim, tenho certeza.
E o meu atendimento, ao invés de tratar minha coluna, começou a tratar da minha vontade de ter um filho.
Então eu percebi que estava encrencada. 

Ah, meus dezessete anos... Minha vida adulta começou ali: as drogas, o sexo, o amor, a faculdade, novos amigos, viagens, trabalho. Eu estava terminando o terceiro ano do segundo grau, já tinha provas de vestibular agendadas em Ouro Preto, Juiz de Fora, Belo Horizonte e São João Del Rei. Minha vida social era agitada, com  saídas noturnas, bebedeiras, namoro e festinhas na casa de amigos. Eu namorava há pouco tempo um cara que era guitarrista de uma banda punk rock e logo comecei a ter relações íntimas com ele. Um belo dia descobri que estava grávida dele. Eu, grávida aos dezessete anos? Fodeu. 

Minha mãe me levou em uma clínica em Copacabana. Não parecia ser o que era, um ambiente de luxo, tudo muito discreto. O médico avaliou o meu caso, me mandou para uma sala onde fui anestesiada e de lá saí sem mais nada dentro de mim. Um misto de vazio e alívio me dominaram, eu não entendia o que sentia, não era nem responsável por aquele aborto, já que foi uma iniciativa da minha família. Sozinha eu nunca teria pensado nisso, nem teria dinheiro para fazê-lo, apesar de ter concordado. 

Por anos fui militante dos direitos reprodutivos femininos, principalmente nos Congressos de Serviço Social durante a vida acadêmica. A favor da legalização do aborto! Tomava pílulas anticoncepcionais, acompanhei outras amigas em outras clínicas de aborto. Uma delas sofreu muita dor, com pouco dinheiro acabou nas mãos de um açougueiro que fez uma raspagem no seu útero de forma grotesca. 

Lá pelos meus 30 anos de vida eu tive, pela primeira vez, vontade de ter filhos. Nunca fui maternal, nem tampouco sonhava com casamento. Na realidade tenho aversão a me ver toda de branco no altar. Mas ao passar a conviver com Gustavo, uma criança de 03 anos, eu tive vontade de ser mãe. Gustavo era filho do meu companheiro e morou comigo durante dois anos apenas, mas ficamos muito ligados um ao outro. Então eu passei a pensar no meu filho, que, se fosse vivo naquela época,  teria treze anos de idade. 

Imaginava o seu rosto, a sua voz, o seu tamanho e o seu olhar. Ele deveria ser alto, se puxasse ao pai, teria a pele negra, o cabelo sarará e seria o meu melhor amigo, o meu maior companheiro. Não sei explicar porque me refiro a ele como se fosse um garoto. Poderia ser uma menina, mas ele sempre foi o meu garoto. 

Que saudades eu sinto do meu filho. Nunca pude embalá-lo em meus braços nem ouvir o seu riso. Se eu pudesse voltar no tempo, jamais faria isso conosco.

_ Tem alguma coisa de errado.
_Tem sim, eu fiz um aborto.
Então a médium caiu aos meus pés e começou a chorar como uma criança. Se lamentava, me chamava de mamãe. Exu jogou um pano preto na minha cabeça, me vestindo de luto. Eu chorava copiosamente, envergonhada e culpada, segurando forte a mão da criança com minha mão esquerda e uma vela com a direita. Ele gritava comigo, me acusava de assassina, dizia que eu não podia ter feito aquilo nunca. Aos poucos o choro da criança foi cessando e para eles eu estava espiritualmente redimida. 
_ Existem três crianças que querem vir para você. Elas estão sem pai e sem mãe, e te escolheram para voltar a Terra. Uma delas será sua.

Saí de lá e nunca mais retornei. Nem filho nem redenção. Nem coluna nem cura de nada. 


(continua)

EU, FRIDA (3)

'Toda esta raiva simplesmente me fez compreender melhor que eu o amo mais do que a minha própria pele, e que, embora você não me ame tanto assim, pelo menos me ama um pouquinho - não é? Se isto não for verdade, sempre terei a esperança de que possa ser, e isso me basta...''

(Frida Kahlo)


Diego y Frida



Alfa, beta, gama... ondas de calor e energia viva me penetraram. Eu atingira um orgasmo.


Foi a primeira vez que esta sensação arrebatadora invadia o meu corpo. Sob uma bruma de sacanagens gostosas e de um amor também primeiro, eu me entreguei como num mergulho a este homem. Eu era uma adolescente e ele já era um homem experiente. Foi numa tarde de domingo gelado de agosto, o dia branco e calmo. Estávamos numa casa abandonada, com um colchão no chão e um micro system tocando Caetano Veloso. Nós sempre ficávamos ali, sem ninguém saber, por várias noites desde que nos conhecemos. Aquele era o nosso place of love.


_ Não fique presa, amarrada ao passado.

_ Agradeço de coração a sua preocupação comigo, mas eu não estou presa ao passado.  Não sou mais aquela garotinha de 17 anos ingênua, agora sou uma mulher vivida.

Ele parecia se sentir culpado, disse que o "eu" dele tinha roubado "ele" de "nós". Fiquei vinte anos sem qualquer notícia sua e falar novamente com ele foi a coisa mais inesperada e preciosa que poderia ter acontecido comigo. 


Foi num sábado. Eu estava trabalhando quando de repente toca o telefone. Chamada anônima. Atendi. Reconheci a voz de imediato, ao me recordar da fita K7 que ele me mandou da Europa com a narração das suas aventuras no Velho Mundo. Emudeci ao telefone, a ligação estava péssima então tive que fazer um grande esforço para entender o que ele dizia. Soube que agora ele morava em uma cidade próxima a Nova York, estava esquiando neste inverno, aguardando a temporada de vôos de parapente. Soube que ele tem dois filhos do primeiro casamento e casou-se novamente. Soube que ele continua a ser um homem idealista e sonhador, que ainda não se sente adequado em relação a sociedade. Soube que ele se recorda com carinho da nossa extrema identificação um pelo outro. 


_ Acho que um dia ainda vamos nos encontrar livres, ele disse. 


No dia em que ele foi embora, numa segunda-feira cinza, eu pensei: amor não pode ser egoísta, se eu o amo vou amar para sempre, por isso permito dentro de mim que ele parta em busca de seus sonhos. Abri a gaiola do coração. Um dia ainda vamos nos encontrar, eu pensava todos os dias. Ele me deixou uma bolsa de couro marrom com vários cartazes de bandas de rock e também um baseado enterrado que nunca encontrei. Acredito que aqueles eram os objetos mais íntimos que ele possuía, coisas que o ligavam a sua própria natureza. E foi tudo que ficou dele. Pois a sua ausência era tão rasgante que me fez buscar caminhos para o esquecimento.


Eu andava pelas ruas do Centro da cidade sozinha e entrei na Galeria do Rock. Estava olhando os vinis raros da loja de discos, quando de repente ele surge na minha frente. Coincidência? Dias antes peguei uma carona no carro com meu irmão e ele foi buscar o tal amigo que veio de São Paulo para jantarem na casa de umas garotas. Quando ele entrou no carro, se apresentou e não paramos mais de falar, até o fim da viagem. Dentro da loja, mais uma vez começamos a conversar e o bate papo rendeu-nos uma caminhada de nove quilômetros até o bairro onde morávamos. O terceiro encontro também não foi marcado. Desci para encontrar minha amiga Andreza na rua. Lá estava ele, me roubando de tudo e de todos com suas histórias extraordinárias. 


Deste dia em diante, não mais nos separamos, até o dia da sua partida. Meus pais aceitaram o namoro. Ele me disse que estava em Juiz de Fora de passagem, pois seu objetivo, ao voltar de São Paulo, era conseguir um visto para a Europa, onde iria morar e trabalhar. Eu cursava o segundo ano do segundo grau em um colégio particular e estava me preparando para fazer vestibular de Serviço Social. Tínhamos sonhos diferentes naquele momento, e eu sabia que logo logo ele iria embora e eu ficaria. Mas não era isso que ia nos separar. Continuaríamos namorando através de cartas por cerca de um ano, até ele retornar da Europa, onde não conseguiu se fixar, e ir para os Estados Unidos. 


Então aquele quarto barato de motel ficou todo rosado, essa era a cor que eu enxergava. Um rosa meio avermelhado, transparente, líquido. O Janelão, era como o chamávamos. Ele estava deitado na cama nu e eu em pé, nua. Ele admirava o meu corpo e me pedia para eu me mostrar. Tímida, eu rodopiava desastrada e começamos a rir. Caí em cima dele, que logo me abraçou e disse que eu era linda. Nos amamos intensamente àquela noite, consigo me lembrar como se fosse agora. Suas mãos fortes me conduzindo, nossos olhares de consentimento, ternura e desejo. Ele tinha uma ousadia que me liberava, não existia limites para o nosso prazer. Nos entregamos por inteiro, corpo burdo, corpo sútil. 


Sentia como se o mundo parasse de girar. Fui levada para uma nova existência, um lugar nunca antes ido. O amor é uma energia. Esta energia, vivida em sua força bruta, sem as barreiras do convencional, explodiu dentro de nós, gerou uma revolução interior. Ali, ele estava totalmente dentro do meu corpo, em cada orifício meu, mas não me sentia invadida nem violada, tudo era orgânico e prazeroso. Era como se tivéssemos um só pulmão para respirarmos e nem por isso sentíamos falta de ar. 


Vinte anos depois, ele me pareceu a mesma pessoa na fotografia. O tempo nos rouba a juventude, nos tira o impulso, nos faz medrosos. Mesmo assim, eu não deixo de sonhar com ele, Ronald. Fico imaginando-o a me olhar, com seus olhos infantis e dizer-me:

_ Você é o amor da minha vida.

(continua)

EU, FRIDA (2)

A Árvore da Esperança
''Estou quase terminando o quadro que nada mais é que o resultado da tal operação. Estou sentada à beira de um precipício - com o colete em uma das mãos. Atrás estou deitada numa maca de hospital - com o rosto voltado para a paisagem - um tanto das costas está descoberto, onde se vê a cicatriz das facadas que me deram os cirurgiões filhos de sua... recém-casada mamãe.'' 
(Frida Kahlo)


_ Merda!

_ Merda!
_ Merda a todos!

Nos cumprimentamos antes da performance, aquela seria a primeira apresentação do grupo em um espaço público. Era fevereiro e o sol das doze horas ardia na rua. Iriamos atravessar a Ponte Velha em Resende/RJ, no horário onde as pessoas estão passeando, fazendo suas compras ou saindo do trabalho. 


Eu criei um parangolé para interagir durante a minha performance. Como estava encarnando Iemanjá, meu parangolé era feito de organza azul, tinha espelhos, vidrilhos, fitas e tampinhas de garrafas que saiam das costas e se arrastavam pelo chão, numa representação do mar que tudo leva e tudo arrasta com suas ondas. Panos brancos amarrados no corpo, deixando à mostra a barriga, o colo e as pernas, longas tranças de lã azuis e prateadas nos cabelos e muita tinta branca em todo o rosto e corpo. Nas mãos, espelhos que refletiam a luz solar. Estava pronta, como um transobjeto, cuja criação ainda precisava da dança para se compor uma obra de arte. 


O grupo se dirigiu do teatro para a rua. Logo começamos a chamar a atenção pelos figurinos excêntricos e coloridos. O nervosismo da estréia deu lugar a uma crescente excitação. Comecei a me lembrar dos princípios daquela performance: a dança começa por dentro, o corpo só dança quando o interior transborda. Quando chegamos na ponte, paramos, nos olhamos e o diretor deu a palavra de partida. Saravá!


Minha dança começou com uma consciente contração muscular do baixo ventre, local onde mora a essência da criação feminina. Uma risada que saiu do clitóris e se espalhou pela barriga, seios, ombros, braços e pernas. Meu corpo era um sorriso que se espalhava na ponte, um misto de descontração e tensão constantes. Dali em diante, só enxergava a plenitude, atingi minha totalidade existencial.


Eu me dancei. Dancei toda a crise e toda a escuridão que há em mim. Liberei as cores do meu astral, flutuei no universo, saí do corpo físico e viajei no etéreo mundo da imaginação. Encontrei minhas diversas personas, todas de mãos dadas, mesmo a mais triste delas me sorria e me agradecia. Era um êxtase em movimentos leves, sutis e suaves. Algo de místico e fabuloso aconteceu naquele momento, como se eu tivesse adquirido o conhecimento de todas as coisas e tivesse ficado velha. 


Meus pés descalços começaram a arder no concreto quente, comecei a sentir as dores no joelho lesionado e minha coluna pesou mil quilos. Comecei a voltar para aquele lugar - a ponte. Lentamente fui arqueando as costas para frente. Arrastei-me o mais devagar possível pelo caminho, já próxima da outra extremidade da ponte. Cobri a cabeça com um tecido branco fluído e transparente, numa representação de Oxalá. Então comecei a ouvir o murmurinho das pessoas, o som da sanfona e do atabaque, tocando um conto de candomblé. Eu estava de volta a realidade daquele momento. A polícia foi chamada por um grupo de evangélicos que se sentiram ameaçados pela nossa performance. Formou-se uma breve confusão no final, que acabou quando o diretor do grupo apresentou a autorização que recebemos da Prefeitura para aquela apresentação. 

Esta recordação me veio à memória assim que abri os olhos. Ainda estava em jejum, minha mãe na cama ao lado da minha. Comecei a brincar com os botões que controlam a cama hospitalar, ora subindo a cabeça da cama, ora subindo os seus pés. Só assim eu podia dançar naquela momento e experimentar novamente aquela sensação celestial. 


Eu já estava na enfermaria há dez dias, contando com os cinco dias no CTI, completaram-se quinze dias de internação hospitalar. Sentei na beira do leito, minha mãe ajudou-me a levantar e conduziu-me ao banheiro. Com o auxílio da força de seus braços e mãos, eu sentei no assento sanitário. Ainda bem que estou fazendo xixi, pensei. Não foi necessário fazer diálise para curar minha insuficiência renal, a overdose de soro foi suficiente. Então cumpri toda aquela rotina matinal: café da manhã sentada na mesa, banho, cama, injeção de corticoide na bunda, curativo. 


O médico entrou no quarto para retirar os pontos da cirurgia. Era um corte que começava logo acima do rego, com uns quinze centímetros de cumprimento. Ele me disse que a cicatrização estava ótima, enquanto eu sentia as linhas de nylon soltando-se da pele. Também disse que eu teria alta hospitalar no dia seguinte, após a última injeção de corticoide. 


Com esta notícia na mente, fui passear de cadeira de rodas pelo hospital. Minha mãe empurrava a cadeira e nós andávamos pelos corredores até chegar em um pequeno jardim com uma clareira, onde eu tomava sol.  Estava feliz com a notícia da alta, mas também com medo. Como ir para casa? Eu não tinha nenhum equilíbrio para andar, precisava de outra pessoa segurando minhas mãos. Não conseguia erguer todo o corpo, as costas ficavam projetadas para a frente e os os passos eram pequenos e incertos. As dores só abrandavam com altas doses de opioides injetáveis, medicamento este que só é administrado em hospitais pois não são vendidos em farmácias. 


Comecei a bombardear meu cérebro com auto ajuda. Eu já cheguei até aqui, agora é só seguir em frente. Estou viva, é o que importa. Basta ter paciência e persistência. Vou me matar de tanto fazer fisioterapia para melhorar bem rápido. A dor vai passar e se não passar, eu me acostumo com ela. Deus está no controle da situação. Minha família e meus amigos vão me ajudar, vai dar tudo certo, eu vou voltar a ter uma vida normal. 


Mas eu sabia que dali em diante eu teria que vencer batalhas diárias de dor e superação. Sabia que estava presa naquele corpo doente, que encontraria diversas limitações e dificuldades para fazer coisas básicas. Sabia o quão distantes eram agora aquelas recordações da performance na ponte. Meu futuro certo era este, e o incerto era até onde eu iria alcançar minha cura. 


A algum tempo atrás, eu saltitava pela vida. Tinha tudo que uma mulher como eu pode querer: bons trabalhos, um namorado amável e bonito, a dança, a poesia e o circo. Agora tudo isso é um sonho. Eu estou partida, agora vivo num planeta inóspito e incolor. Fiquei o dia inteiro brigando com esta dualidade dentro de mim. Perdi muita coisa, mas ainda não perdi a esperança, esse desejo de que tudo melhore.



(continua)

EU, FRIDA (1)

'Para que preciso de pés quando tenho asas para voar?'' 

''(E o que mais dói) é viver num corpo que é um sepulcro que nos aprisiona (segundo Platão) do mesmo modo como a concha aprisiona a ostra.''

(Frida Kahlo)


A Coluna Partida


Acordei de súbito. Não sabia onde estava. 
Nem sentia minhas pernas, apenas um formigamento na superfície da pele, um peso.
A coluna doía muito, parecia que havia sido cortada ao meio. Eu não podia me levantar sozinha, nem ao menos me mover. Comecei a me debater na cama, aonde estou? 

Agora me lembro. Minha mãe segurou minha mão e me desejou boa sorte, me olhando de uma forma tão triste que chegou a me comover. Fui levada para o Centro Cirúrgico e uma enfermeira muito simpática pulsionou minha veia e inseriu um acesso venoso. Ela ficou conversando comigo na sala durante uns vinte minutos, até os médicos chegarem. Falei que eu trabalho em um hospital de emergência público e que sou assistente social. Ela me disse que tem uma prima que se formou nesta área. Quando chegaram, os médicos analisaram as imagens da minha ressonância, discutindo onde e como seria feito o implante da prótese de titânio. Entre a L1 e L3, só entendi isso. Então o anestesista me disse que eu ia sentir um formigamento e logo depois iria dormir. 


_ Você está no CTI, disse o médico. Você acabou de sair da cirurgia e seus rins pararam de funcionar. Terá que ficar aqui até melhorar.


Minha mãe, onde está minha mãe? Ela deve estar preocupada comigo, ela está me esperando no quarto, Dr. preciso ver a minha mãe. A dor era tão intensa, que eu sentia os ossos vivos e expostos. Não sabia se era dia ou noite, mas o relógio em frente à cama marcava duas horas. Ainda sem plena consciência, voltei a dormir por mais algumas horas, até ser acordada pela enfermeira administrando medicamentos pelo meu acesso venoso. 


Era de manhã. O relógio marcava seis horas. Minha boca estava muito seca e pedi água. Tomei um copo num gole só e senti náuseas. Olhei para baixo. Lençóis revirados e muito sangue. Queria sair dali, queria ver alguém conhecido, queria saber o que estava acontecendo. Afinal, o plano era eu sair andando do hospital dois dias depois da cirurgia de artrodese lombar. 


Senti que meu corpo não mais me pertencia. Meu corpo padecia absoluto e dominava toda minha vida. Não podia sair dali, não podia andar, nem me levantar, não podia dançar, não podia fazer amor. Como eu poderia agora viver aprisionada em um corpo doente? Naquele momento, a vida perdeu o seu sentido e eu perdi toda a vontade de sair dali. Me adormeci por dentro e fiquei a manhã inteira gemendo e me contorcendo na cama hospitalar. 


Senti um cansaço imenso. Meu coração batia rápido e estava com falta de ar. Minhas mãos pareciam batatas de tão inchadas. Eu tinha arrancado o dreno me contorcendo de dor na cama e tinha me vomitado toda de suco de goiaba que tomei na hora do almoço. Minha mãe ficou comigo durante 30 minutos e me disse que eu precisava fazer xixi para ficar boa. Por isso estavam administrando altas doses de soro fisiológico nas minhas veias. Ela parecia preocupada, mas me sorria como quem quer disfarçar que está tudo bem. 


A enfermeira me chamou para o banho. Como sair dessa cama? Não me toquem, vai doer mais ainda, pensei. Então duas homens me levantaram pelo lençol e me puseram na cadeira de rodas. Ai, como dói, pensei. Ao passar na frente do espelho, vi meu semblante anêmico e sem cor. Havia perdido muito sangue. Me deram banho e então surgiu um fisioterapeuta. Ele disse que eu precisava ficar sentada por algum tempo para que não tivesse infecção pulmonar. Um chato, não tinha nem 24 horas que eu estava deitada. Não quis ficar sentada, mas ele me obrigou. Não podia reagir, fiquei submissa. A sensação era de que meu quadril estava adentrando minhas pernas. Achei uma judiação comigo. Eu apenas urrava de dor e a espalhava por todo o CTI.


No dia seguinte tive a notícia: iria tomar duas bolsas de sangue. Tive que fazer um acesso venoso profundo no pescoço, pois não tinha mais veia nos braços. Aquele sangue me deu bem estar e força. Me agarrava nas grades da cama e levantava as costas dizendo:


_ Este é o sangue do Incrível Hulk! E todos riram da minha brincadeira. Estava feliz com meus super poderes sanguíneos, quando o médico chegou e me disse que tinha descoberto o meu diagnóstico através de um exame laboratorial.


_ Você teve rabdomiólise após a cirurgia. Rabdomiólise é uma lesão muscular  que pode ser causada por fatores físicos, químicos ou biológicos. A destruição do músculo leva à liberação de produtos das células musculares na corrente sanguínea que são lesivos para os rins, podendo causar insuficiência renal aguda. O tratamento se dá com fluidos intravenosos ou diálise. Se o soro não resolver será necessário fazer diálise.


_ Porque isso aconteceu comigo Doutor?


_ Não sei. Acredito que tenha sido a complexidade da cirurgia, demorou mais de dez horas e a lesão estava maior do que eu imaginava. Rabdomiólise é comum em caso de esmagamento de membros, e o seu corpo leu esta cirurgia como se tivesse sido atropelado por um caminhão. Isso nunca tinha acontecido antes com nenhum paciente meu.


Que bom, fui contemplada com uma reação rara, pensei. Agora posso jogar na loteria. 


_ Mas eu corro risco de morte?


_ Enquanto seus rins não voltam a funcionar, sim. 


Então ali percebi que a minha situação não era nada boa, apesar da minha aparente força e bom humor. Eu poderia ter morrido, ninguém nem sabia o que eu tinha, eu poderia estar sendo velada dentro de um caixão naquele momento. Minha mãe chorando e a galera fazendo um som de violão do lado de fora. 


Por favor, toquem Stairway to Heaven no meu velório. 


(continua)