terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

EU, FRIDA (4)

Henry Ford Hospital
''Pintar completou minha vida. Perdi três filhos e uma série de outras coisas, que teriam preenchido minha vida pavorosa. Minha pintura tomou o lugar de tudo isso. Creio que trabalhar é o melhor.'' Frida Kahlo

A noite avançava e eu estava no Centro de Umbanda desde às três horas da tarde. Sentia fome, mas só sairia dali quando tudo acabasse. A sala  estava quente e escura, iluminada apenas com algumas velas acesas. Várias pessoas foram atendidas e partiram dali. Mas o lugar ainda estava cheio, entre médiuns iniciados e pessoas que, como eu, procuravam ajuda. Eu estava ali por causa das minhas dores lombares. Procurava uma cura para o meu problema de saúde, já que nenhum médico me dera esperança além da cirurgia. 

A mãe de santo, uma mulher branca, baixa e magra, com cabelos curtos, negros e lisos,  nariz fino e muito simpática, que participou do estudo religioso horas antes, se transformara no Exu das Sete Encruzilhadas. Ele era desbocado, prepotente, mulherengo, sedutor e zangado. Não havia som de tambores no local, apenas vozes entoando as músicas e as vozes dos orixás: Exu, Erês, Ciganas, Preto Velho e Zé Pilintra. O Exu das Sete Encruzilhadas era o mêntor daquele ritual, ele olhava para nós do platéia e escolhia uma pessoa. Esta pessoa era levada para o meio do círculo onde os demais orixás se encontravam. Eu assistia toda aquela sucessão de ritos, as velas e incensos acesos, os panos coloridos, a cachaça, a pipoca, as imagens de santos, arcanjos e orixás espalhadas, os potes de barro, as palavras proféticas e escrachadas de Exu, que tocava sempre na ferida das pessoas com deboche e brabeza. Então chegava o momento do transe, onde orixá e pessoa pareciam sair daquele plano material, olhos virados, corpos dançando, palavras soltas, gemidos, pessoas caídas no chão, gritos e outros espíritos obscuros que guerreavam com Exu. 

Eu já estava com medo do que aconteceria comigo, aquilo era tudo muito intenso e tenso. Então chegou a minha vez. Exu me cortejou e disse que queria ser o meu macho e fazer um filho em mim. Eu disse que não queria pois já tinha o meu namorado. 
_ Então você quer engravidar dele, do seu namorado? Tem certeza disso?
_ Quero sim, tenho certeza.
E o meu atendimento, ao invés de tratar minha coluna, começou a tratar da minha vontade de ter um filho.
Então eu percebi que estava encrencada. 

Ah, meus dezessete anos... Minha vida adulta começou ali: as drogas, o sexo, o amor, a faculdade, novos amigos, viagens, trabalho. Eu estava terminando o terceiro ano do segundo grau, já tinha provas de vestibular agendadas em Ouro Preto, Juiz de Fora, Belo Horizonte e São João Del Rei. Minha vida social era agitada, com  saídas noturnas, bebedeiras, namoro e festinhas na casa de amigos. Eu namorava há pouco tempo um cara que era guitarrista de uma banda punk rock e logo comecei a ter relações íntimas com ele. Um belo dia descobri que estava grávida dele. Eu, grávida aos dezessete anos? Fodeu. 

Minha mãe me levou em uma clínica em Copacabana. Não parecia ser o que era, um ambiente de luxo, tudo muito discreto. O médico avaliou o meu caso, me mandou para uma sala onde fui anestesiada e de lá saí sem mais nada dentro de mim. Um misto de vazio e alívio me dominaram, eu não entendia o que sentia, não era nem responsável por aquele aborto, já que foi uma iniciativa da minha família. Sozinha eu nunca teria pensado nisso, nem teria dinheiro para fazê-lo, apesar de ter concordado. 

Por anos fui militante dos direitos reprodutivos femininos, principalmente nos Congressos de Serviço Social durante a vida acadêmica. A favor da legalização do aborto! Tomava pílulas anticoncepcionais, acompanhei outras amigas em outras clínicas de aborto. Uma delas sofreu muita dor, com pouco dinheiro acabou nas mãos de um açougueiro que fez uma raspagem no seu útero de forma grotesca. 

Lá pelos meus 30 anos de vida eu tive, pela primeira vez, vontade de ter filhos. Nunca fui maternal, nem tampouco sonhava com casamento. Na realidade tenho aversão a me ver toda de branco no altar. Mas ao passar a conviver com Gustavo, uma criança de 03 anos, eu tive vontade de ser mãe. Gustavo era filho do meu companheiro e morou comigo durante dois anos apenas, mas ficamos muito ligados um ao outro. Então eu passei a pensar no meu filho, que, se fosse vivo naquela época,  teria treze anos de idade. 

Imaginava o seu rosto, a sua voz, o seu tamanho e o seu olhar. Ele deveria ser alto, se puxasse ao pai, teria a pele negra, o cabelo sarará e seria o meu melhor amigo, o meu maior companheiro. Não sei explicar porque me refiro a ele como se fosse um garoto. Poderia ser uma menina, mas ele sempre foi o meu garoto. 

Que saudades eu sinto do meu filho. Nunca pude embalá-lo em meus braços nem ouvir o seu riso. Se eu pudesse voltar no tempo, jamais faria isso conosco.

_ Tem alguma coisa de errado.
_Tem sim, eu fiz um aborto.
Então a médium caiu aos meus pés e começou a chorar como uma criança. Se lamentava, me chamava de mamãe. Exu jogou um pano preto na minha cabeça, me vestindo de luto. Eu chorava copiosamente, envergonhada e culpada, segurando forte a mão da criança com minha mão esquerda e uma vela com a direita. Ele gritava comigo, me acusava de assassina, dizia que eu não podia ter feito aquilo nunca. Aos poucos o choro da criança foi cessando e para eles eu estava espiritualmente redimida. 
_ Existem três crianças que querem vir para você. Elas estão sem pai e sem mãe, e te escolheram para voltar a Terra. Uma delas será sua.

Saí de lá e nunca mais retornei. Nem filho nem redenção. Nem coluna nem cura de nada. 


(continua)

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