terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

EU, FRIDA (2)

A Árvore da Esperança
''Estou quase terminando o quadro que nada mais é que o resultado da tal operação. Estou sentada à beira de um precipício - com o colete em uma das mãos. Atrás estou deitada numa maca de hospital - com o rosto voltado para a paisagem - um tanto das costas está descoberto, onde se vê a cicatriz das facadas que me deram os cirurgiões filhos de sua... recém-casada mamãe.'' 
(Frida Kahlo)


_ Merda!

_ Merda!
_ Merda a todos!

Nos cumprimentamos antes da performance, aquela seria a primeira apresentação do grupo em um espaço público. Era fevereiro e o sol das doze horas ardia na rua. Iriamos atravessar a Ponte Velha em Resende/RJ, no horário onde as pessoas estão passeando, fazendo suas compras ou saindo do trabalho. 


Eu criei um parangolé para interagir durante a minha performance. Como estava encarnando Iemanjá, meu parangolé era feito de organza azul, tinha espelhos, vidrilhos, fitas e tampinhas de garrafas que saiam das costas e se arrastavam pelo chão, numa representação do mar que tudo leva e tudo arrasta com suas ondas. Panos brancos amarrados no corpo, deixando à mostra a barriga, o colo e as pernas, longas tranças de lã azuis e prateadas nos cabelos e muita tinta branca em todo o rosto e corpo. Nas mãos, espelhos que refletiam a luz solar. Estava pronta, como um transobjeto, cuja criação ainda precisava da dança para se compor uma obra de arte. 


O grupo se dirigiu do teatro para a rua. Logo começamos a chamar a atenção pelos figurinos excêntricos e coloridos. O nervosismo da estréia deu lugar a uma crescente excitação. Comecei a me lembrar dos princípios daquela performance: a dança começa por dentro, o corpo só dança quando o interior transborda. Quando chegamos na ponte, paramos, nos olhamos e o diretor deu a palavra de partida. Saravá!


Minha dança começou com uma consciente contração muscular do baixo ventre, local onde mora a essência da criação feminina. Uma risada que saiu do clitóris e se espalhou pela barriga, seios, ombros, braços e pernas. Meu corpo era um sorriso que se espalhava na ponte, um misto de descontração e tensão constantes. Dali em diante, só enxergava a plenitude, atingi minha totalidade existencial.


Eu me dancei. Dancei toda a crise e toda a escuridão que há em mim. Liberei as cores do meu astral, flutuei no universo, saí do corpo físico e viajei no etéreo mundo da imaginação. Encontrei minhas diversas personas, todas de mãos dadas, mesmo a mais triste delas me sorria e me agradecia. Era um êxtase em movimentos leves, sutis e suaves. Algo de místico e fabuloso aconteceu naquele momento, como se eu tivesse adquirido o conhecimento de todas as coisas e tivesse ficado velha. 


Meus pés descalços começaram a arder no concreto quente, comecei a sentir as dores no joelho lesionado e minha coluna pesou mil quilos. Comecei a voltar para aquele lugar - a ponte. Lentamente fui arqueando as costas para frente. Arrastei-me o mais devagar possível pelo caminho, já próxima da outra extremidade da ponte. Cobri a cabeça com um tecido branco fluído e transparente, numa representação de Oxalá. Então comecei a ouvir o murmurinho das pessoas, o som da sanfona e do atabaque, tocando um conto de candomblé. Eu estava de volta a realidade daquele momento. A polícia foi chamada por um grupo de evangélicos que se sentiram ameaçados pela nossa performance. Formou-se uma breve confusão no final, que acabou quando o diretor do grupo apresentou a autorização que recebemos da Prefeitura para aquela apresentação. 

Esta recordação me veio à memória assim que abri os olhos. Ainda estava em jejum, minha mãe na cama ao lado da minha. Comecei a brincar com os botões que controlam a cama hospitalar, ora subindo a cabeça da cama, ora subindo os seus pés. Só assim eu podia dançar naquela momento e experimentar novamente aquela sensação celestial. 


Eu já estava na enfermaria há dez dias, contando com os cinco dias no CTI, completaram-se quinze dias de internação hospitalar. Sentei na beira do leito, minha mãe ajudou-me a levantar e conduziu-me ao banheiro. Com o auxílio da força de seus braços e mãos, eu sentei no assento sanitário. Ainda bem que estou fazendo xixi, pensei. Não foi necessário fazer diálise para curar minha insuficiência renal, a overdose de soro foi suficiente. Então cumpri toda aquela rotina matinal: café da manhã sentada na mesa, banho, cama, injeção de corticoide na bunda, curativo. 


O médico entrou no quarto para retirar os pontos da cirurgia. Era um corte que começava logo acima do rego, com uns quinze centímetros de cumprimento. Ele me disse que a cicatrização estava ótima, enquanto eu sentia as linhas de nylon soltando-se da pele. Também disse que eu teria alta hospitalar no dia seguinte, após a última injeção de corticoide. 


Com esta notícia na mente, fui passear de cadeira de rodas pelo hospital. Minha mãe empurrava a cadeira e nós andávamos pelos corredores até chegar em um pequeno jardim com uma clareira, onde eu tomava sol.  Estava feliz com a notícia da alta, mas também com medo. Como ir para casa? Eu não tinha nenhum equilíbrio para andar, precisava de outra pessoa segurando minhas mãos. Não conseguia erguer todo o corpo, as costas ficavam projetadas para a frente e os os passos eram pequenos e incertos. As dores só abrandavam com altas doses de opioides injetáveis, medicamento este que só é administrado em hospitais pois não são vendidos em farmácias. 


Comecei a bombardear meu cérebro com auto ajuda. Eu já cheguei até aqui, agora é só seguir em frente. Estou viva, é o que importa. Basta ter paciência e persistência. Vou me matar de tanto fazer fisioterapia para melhorar bem rápido. A dor vai passar e se não passar, eu me acostumo com ela. Deus está no controle da situação. Minha família e meus amigos vão me ajudar, vai dar tudo certo, eu vou voltar a ter uma vida normal. 


Mas eu sabia que dali em diante eu teria que vencer batalhas diárias de dor e superação. Sabia que estava presa naquele corpo doente, que encontraria diversas limitações e dificuldades para fazer coisas básicas. Sabia o quão distantes eram agora aquelas recordações da performance na ponte. Meu futuro certo era este, e o incerto era até onde eu iria alcançar minha cura. 


A algum tempo atrás, eu saltitava pela vida. Tinha tudo que uma mulher como eu pode querer: bons trabalhos, um namorado amável e bonito, a dança, a poesia e o circo. Agora tudo isso é um sonho. Eu estou partida, agora vivo num planeta inóspito e incolor. Fiquei o dia inteiro brigando com esta dualidade dentro de mim. Perdi muita coisa, mas ainda não perdi a esperança, esse desejo de que tudo melhore.



(continua)

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