terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

EU, FRIDA (1)

'Para que preciso de pés quando tenho asas para voar?'' 

''(E o que mais dói) é viver num corpo que é um sepulcro que nos aprisiona (segundo Platão) do mesmo modo como a concha aprisiona a ostra.''

(Frida Kahlo)


A Coluna Partida


Acordei de súbito. Não sabia onde estava. 
Nem sentia minhas pernas, apenas um formigamento na superfície da pele, um peso.
A coluna doía muito, parecia que havia sido cortada ao meio. Eu não podia me levantar sozinha, nem ao menos me mover. Comecei a me debater na cama, aonde estou? 

Agora me lembro. Minha mãe segurou minha mão e me desejou boa sorte, me olhando de uma forma tão triste que chegou a me comover. Fui levada para o Centro Cirúrgico e uma enfermeira muito simpática pulsionou minha veia e inseriu um acesso venoso. Ela ficou conversando comigo na sala durante uns vinte minutos, até os médicos chegarem. Falei que eu trabalho em um hospital de emergência público e que sou assistente social. Ela me disse que tem uma prima que se formou nesta área. Quando chegaram, os médicos analisaram as imagens da minha ressonância, discutindo onde e como seria feito o implante da prótese de titânio. Entre a L1 e L3, só entendi isso. Então o anestesista me disse que eu ia sentir um formigamento e logo depois iria dormir. 


_ Você está no CTI, disse o médico. Você acabou de sair da cirurgia e seus rins pararam de funcionar. Terá que ficar aqui até melhorar.


Minha mãe, onde está minha mãe? Ela deve estar preocupada comigo, ela está me esperando no quarto, Dr. preciso ver a minha mãe. A dor era tão intensa, que eu sentia os ossos vivos e expostos. Não sabia se era dia ou noite, mas o relógio em frente à cama marcava duas horas. Ainda sem plena consciência, voltei a dormir por mais algumas horas, até ser acordada pela enfermeira administrando medicamentos pelo meu acesso venoso. 


Era de manhã. O relógio marcava seis horas. Minha boca estava muito seca e pedi água. Tomei um copo num gole só e senti náuseas. Olhei para baixo. Lençóis revirados e muito sangue. Queria sair dali, queria ver alguém conhecido, queria saber o que estava acontecendo. Afinal, o plano era eu sair andando do hospital dois dias depois da cirurgia de artrodese lombar. 


Senti que meu corpo não mais me pertencia. Meu corpo padecia absoluto e dominava toda minha vida. Não podia sair dali, não podia andar, nem me levantar, não podia dançar, não podia fazer amor. Como eu poderia agora viver aprisionada em um corpo doente? Naquele momento, a vida perdeu o seu sentido e eu perdi toda a vontade de sair dali. Me adormeci por dentro e fiquei a manhã inteira gemendo e me contorcendo na cama hospitalar. 


Senti um cansaço imenso. Meu coração batia rápido e estava com falta de ar. Minhas mãos pareciam batatas de tão inchadas. Eu tinha arrancado o dreno me contorcendo de dor na cama e tinha me vomitado toda de suco de goiaba que tomei na hora do almoço. Minha mãe ficou comigo durante 30 minutos e me disse que eu precisava fazer xixi para ficar boa. Por isso estavam administrando altas doses de soro fisiológico nas minhas veias. Ela parecia preocupada, mas me sorria como quem quer disfarçar que está tudo bem. 


A enfermeira me chamou para o banho. Como sair dessa cama? Não me toquem, vai doer mais ainda, pensei. Então duas homens me levantaram pelo lençol e me puseram na cadeira de rodas. Ai, como dói, pensei. Ao passar na frente do espelho, vi meu semblante anêmico e sem cor. Havia perdido muito sangue. Me deram banho e então surgiu um fisioterapeuta. Ele disse que eu precisava ficar sentada por algum tempo para que não tivesse infecção pulmonar. Um chato, não tinha nem 24 horas que eu estava deitada. Não quis ficar sentada, mas ele me obrigou. Não podia reagir, fiquei submissa. A sensação era de que meu quadril estava adentrando minhas pernas. Achei uma judiação comigo. Eu apenas urrava de dor e a espalhava por todo o CTI.


No dia seguinte tive a notícia: iria tomar duas bolsas de sangue. Tive que fazer um acesso venoso profundo no pescoço, pois não tinha mais veia nos braços. Aquele sangue me deu bem estar e força. Me agarrava nas grades da cama e levantava as costas dizendo:


_ Este é o sangue do Incrível Hulk! E todos riram da minha brincadeira. Estava feliz com meus super poderes sanguíneos, quando o médico chegou e me disse que tinha descoberto o meu diagnóstico através de um exame laboratorial.


_ Você teve rabdomiólise após a cirurgia. Rabdomiólise é uma lesão muscular  que pode ser causada por fatores físicos, químicos ou biológicos. A destruição do músculo leva à liberação de produtos das células musculares na corrente sanguínea que são lesivos para os rins, podendo causar insuficiência renal aguda. O tratamento se dá com fluidos intravenosos ou diálise. Se o soro não resolver será necessário fazer diálise.


_ Porque isso aconteceu comigo Doutor?


_ Não sei. Acredito que tenha sido a complexidade da cirurgia, demorou mais de dez horas e a lesão estava maior do que eu imaginava. Rabdomiólise é comum em caso de esmagamento de membros, e o seu corpo leu esta cirurgia como se tivesse sido atropelado por um caminhão. Isso nunca tinha acontecido antes com nenhum paciente meu.


Que bom, fui contemplada com uma reação rara, pensei. Agora posso jogar na loteria. 


_ Mas eu corro risco de morte?


_ Enquanto seus rins não voltam a funcionar, sim. 


Então ali percebi que a minha situação não era nada boa, apesar da minha aparente força e bom humor. Eu poderia ter morrido, ninguém nem sabia o que eu tinha, eu poderia estar sendo velada dentro de um caixão naquele momento. Minha mãe chorando e a galera fazendo um som de violão do lado de fora. 


Por favor, toquem Stairway to Heaven no meu velório. 


(continua)

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