sábado, 1 de março de 2014

EU, FRIDA (5)

''Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.''
(Frida Kahlo)


As Duas Fridas
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ELA I

Tinha um coração. 
Não, tinha dois corações.
Um que pulsava a vida e outro que amava.
Um que irrigava sangue nas artérias e outro que chorava.
Pobre menina triste...
Pobre diaba.

ELA II


Gostava de segredos.

Sempre um segredo e outro segredo.
Sabia mentir a si mesma.
Acreditava ser verdade a sua própria invenção.
Uma vida aqui, outra acolá. 
No seu espelho distorcido, ficou a imagem
que não era dela e ninguém mais viu.

E com as mãos espalmadas, acariciava o próprio rosto, sentindo a pele oleosa e quente das bochechas, macias e redondas, como um pêssego maduro. O seu corpo se vestia da nudez dura e cruel dos anos passados. Os seios já cansados da rigidez, agora mais macios e inclinados, porém ainda espertos. A barriga que insiste em insinuar-se à frente, os flancos de gordura nas costas. Era um corpo sincero, vivido. Ao olhar-se no espelho, sorriu e vislumbrou as expressões do olhar. Pálpebras caídas, marcas de expressão por todo o rosto. Não parecia mais uma menina, e sim uma mulher. E era bonita.

Em seguida sua pele corou e começou a formigar. Coceiras, comichões e dores. O desconforto cresceu a tal ponto que ela desesperou-se. Fios dourados e finos de cabelos soltavam-se do couro cabeludo feito planta de soprar. Sentiu o gosto de sangue na boca. Seu dente incisivo desprendeu-se da gengiva. As unhas caíram, a coluna partiu-se, os olhos pularam para fora. O corpo ficou disforme, com os seios imensos e as pernas cada vez mais finas. Ela foi se desfazendo, se desfazendo rapidamente. Virou um mingau de gente. Lisergicamente ela dissolveu-se da sua própria imagem. 



ELA III


Uma olhou para a outra.

Se conhecem?
Se amam ou se odeiam?
Uma olha a outra pelo olho esquerdo
Olha bem para o seu dedo
O mesmo dedo que lhe enfiou na cara

Gostava do pé de ameixa no quintal de casa para se empoleirar e tinha muitos amiguinhos na rua. Mas desde muito cedo conheceu a melancolia. Brincava de boneca quando viu que sua fantasia de brincar era melhor que a vida que vivia. Batia nos meninos que a chamavam de Pulga Loira. 


Nunca deixou de ser idealista. Imaginava um mundo de John Lennon e pintava camisetas com frases de utopia social. Anotava nas agendas os seus pensamentos mais importantes, crendo que assim eles estariam eternizados. Conversava com os insetos e fazia o besouro de broche na camisa. Escrevia poesias na máquina de escrever. Sonhava em ser bailarina ou médica. Ouvia "Meus Caros Amigos" com a mãe e "Led Zeppelin IV" com o pai. Carregava a melhor amiga na sua bicicleta para os passeios vespertinos na estrada da represa.


Até que um dia um sentimento obscuro veio à tona. Ouvia por dentro uma confusão de intuições e uma voz barulhenta e ofegante. Sabia que existia outra pessoa dentro dela e parecia envelhecer dois anos a cada dia aquela estranha.  Ninguém entende? Cresceu disfarçando a dor da desconhecida, cobriu-a com sua rebeldia. Achando-se em um mundo paralelo, trancou-se no seu quarto solitário e jogou-se na vida frívola. 



EU IV

Então a juventude aflorou naquelas duas

Elas viajaram para tantos e tantos lugares
Outras viagens astrais, sensoriais.
Davam-se bem as duas.
Uma gostava de andar, a outra de fumar
Uma queria o alto mar, a outra a praia
Uma namorava, a outra ouvia rock
Quando se encontravam, faziam tudo juntas.

Os olhos se abriram e enxerguei a praia. Ouvi apenas o barulho manso das ondas. Incrivelmente naquele momento, dois golfinhos saltavam em cima das ondas, o sol ainda não raiara, nem a lua habitava mais o céu, que se cobria de azul cobalto. Estava dentro do saco de dormir, deitada na areia. Vieram lembranças confusas da noite anterior, o lual, a roda de violão, as tochas de bambu acesas, e Enzo. Olhei para os lados e não o encontrei, onde estaria Enzo? Fiquei ali assistindo os golfinhos até eles sumirem no horizonte.


Enzo apareceu na praia lá pelo meio dia. Said nothing about anything. Os garotos são sempre assim? Eu me sentia telúrica, com um pêndulo nas mãos captando as energias e vibrações do lugar e das pessoas. O meu submundo era uma coisa assim: eu simplesmente andava sem me preocupar com  a direção. Queria mesmo era experimentar situações e sensações. Não me importavam as consequências, eu nada temia e pouco sabia da morte. 


EU V


Elas vão embora?

As raízes já estão erodindo o chão
Daqui a pouco elas chegam
Devem estar procurando um bar 
Talvez uma chegue e a outra fique por lá
Talvez uma diga que te ama e a outra nem aí
Uma hora junta todas e ama tudo
Uma não vai sem a outra mesmo

EU VI


O que eu sou não tem começo nem fim, apenas uma continuação que transcende o que há em mim. 







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